Sir Terry Pratchett é um autor prolífico que já escreveu, inclusive, um livro em parceria com Neil Gaiman (autor de Sandman, Deuses americanos e O livro do cemitério, dentre outros), Belas maldições. Mas nesta resenha, falaremos especificamente sobre a série Discworld, definitivamente a mais famosa de sua carreira.
Discworld é uma série de fantasia… Mas não é uma série de fantasia como outra qualquer. Na verdade, os livros costumam fazer comédia com os arquétipos e clichês do gênero. Por exemplo, tanto em Guards! Guards! (lançado no Brasil pela editora Conrad como Guardas! Guardas!) quanto em The Last Hero temos cenas em que um grupo de antagonistas não quer avançar sobre um herói solitário, porque “todos sabem que heróis solitários lutando em uma enorme desvantagem numérica sempre vencem!” Ou em Men at Arms, temos uma discussão sobre o arquétipo do rei que se revela aos seus súditos ao retirar a espada de uma pedra – mas os personagens concordam que muito mais impressionante seria esse rei colocar a espada na pedra (isto é, atravessar a rocha com sua espada)!
Mas a série não é apenas comédia (embora seja muito engraçada, especialmente para aqueles que são fãs de trocadilhos infames, como este que vos fala). Na verdade, embora os primeiros livros sejam, em sua maior parte, apenas sátira e paródia da fantasia tradicional, as poucos os livros foram ficando mais sérios (sem perder a graça, no entanto); eles deixaram de apenas fazer comédia com a fantasia para usar a fantasia para fazer comédia e drama.
Eis o Discworld (em tradução livre, “o Mundo do Disco”; a tradução brasileira manteve “Discworld”): a tartaruga A’Tuin carregando os quatro elefantes que carregam o mundo em suas costas. Ilustração feita por Paul Kidby para o livro The Last Hero.
Dentro da série, existem algumas subséries, cada qual com seu próprio elenco de protagonistas e coadjuvantes e com seus próprios temas (embora muitas vezes eles compartilhem personagens e temas; quase todos os livros escritos após Guards! Guards! que se passam na cidade de Ankh-Morpork, por exemplo, costumam ter aparições ocasionais de alguns personagens da série da Guarda da Cidade). Eis aqui as mais famosas:
– Rincewind: Recebeu esse nome por causa de seu protagonista, Rincewind, o mago mais inepto do Disco. Foram os livros desse mago covarde mas sortudo (pudera: a Senhora Sorte, a deusa do acaso, das coincidências e das chances de 1 em 1 milhão, adora ele!) e ocasionalmente bastante astuto que deram início a toda a série. Os primeiros livros foram The Colour of Magic (A cor da magia) e The Light Fantastic (A luz fantástica), que formam uma duologia, coisa rara em Discworld – todos os outros livros contam histórias independentes umas das outras.
Outros personagens dignos de nota são Cohen, o Bárbaro, paródia de Conan (ele é um bárbaro de 90 anos de idade, mas ainda é o maior guerreiro de todo o Disco – afinal, ele alcançou os 90 anos na profissão mais perigosa do mundo!), e Duasflor, um turista desatento mas quase tão sortudo quanto o Rincewind!
Como dito antes, esses livros costumam ser os mais simples em termos de temas e arquétipos trabalhados, sendo mais dedicados à comédia. Mas isso eles conseguem fazer muito bem, são engraçados e divertidos!
O mago Rincewind, especialista em fugir de qualquer coisa no Disco, e Cohen, o Bárbaro, especialista em matar qualquer coisa no Disco. Ambos são grandes amigos: Rincewind já se encontrou com Cohen várias vezes, e o bárbaro nunca o matou! Ilustrações por Paul Kidby para o livro The Last Hero.
– Morte: Também esta subsérie recebeu o nome de seu protagonista, o Morte (sim, soa estranho chamar a encarnação antropomórfica da morte pelo artigo masculino em português, mas tem que ser assim – o personagem é claramente masculino, apesar de não ser humano). Outros personagens importantes são Ysabell, sua filha adotiva; Mort, seu aprendiz; e Susan Sto Helit, sua neta (como dizem os livros, no Disco, a hereditariedade nem sempre é genética).
Sim, você está vendo o Morte prestes a tocar um power chord em uma flying-v e pilotando a moto ao melhor estilo Juventude Transviada! Ilustrações por Paul Kidby para o livro Soul Music.
Essa é uma série bem mais densa, em termos filosóficos, que a de Rincewind. Ela costuma trabalhar com temas como Justiça, Dever, a importância da fantasia para o ser humano, e o valor da Vida perante a Morte. São os livros favoritos deste que vos fala. Destaco, em particular, Reaper Man, no qual Morte é demitido e tem que aprender a viver como um ser humano enquanto o caos toma conta do mundo até que haja uma reorganização burocrática do Universo, e Soul Music, no qual o rock’n’roll invade o Disco e a neta do Morte se apaixona por Buddy Holly – ou seu equivalente.
– As bruxas de Lancre: Infelizmente, caro leitor, nunca li estes livros! Sei dizer apenas que são protagonizados pela vovó Weatherwax, mama Ogg, Magrat Garlick e Tiffany Aching (esta última, protagonista de romances para jovens – isto é, livros para a faixa etária de 14 a 21 anos).
– A guarda da cidade: Personagens de fantasia medieval não costumam ter muito respeito pelos pobres guardinhas das cidades que visitam. Afinal, foram eles que mataram o terrível dragão que assolava a cidade e seqüestrou a princesa? Foram eles que arruinaram os planos macabros do feiticeiro maligno? Guardas, em cenários de fantasia medieval, servem apenas para atrapalhar a vida dos protagonistas.
Bem, não aqui! Nesta série, protagonizada pelo comandante Sam Vimes (o Clint Eastwood do Disco), capitão Carrot Ironfoundersson (o rei Artur do Disco – mas que tenta manter isso em segredo, embora todos já saibam), e vários outros personagens (Fred Colon, Nobby Nobbs, Angua von Überwald, etc.), são os guardas que resolvem os problemas, desde a invasão de um dragão até um estado de guerra com outra nação!
Os livros da guarda da cidade costumam ser tão densos quanto os do Morte, talvez até mais. Nestes livros vemos o pior do ser humano em ação: assassinatos, corrupção, disputas pelo poder e as consequências que trazem para o povo… Basta dizer que Night Watch, apesar de se passar em uma cidade fictícia em um mundo de fantasia, trata de temas como ditaduras e reinos de terror de um modo muito mais maduro e visceral que muitos outros livros pretensamente sérios. Mas não temam, fãs da boa comédia! Eles ainda costumam ser engraçados. Na verdade, às vezes o escritor faz uma justaposição – intencional, que fique bem claro – entre a comédia e o drama que você não sabe se ri, chora, ou ambos.
Sir Samuel Vimes, comandante da guarda e duque de Ankh-Morpork – viram como ele é a cara do Clint Eastwood em seus tempos de caubói? –, ilustrado por Paul Kidby.
Capitão Carrot Ironfoundersson, tomando posse da Lua em nome de Ankh-Morpork, ilustrado também por Paul Kidby (perceberam que esse artista é basicamente A referência visual para Discworld, né?) para o livro The Last Hero.
Encerro esta resenha com uma triste notícia, caro leitor. Em 2007, Terry Pratchett anunciou que estava com Mal de Alzheimer, situação que ele descreveu, bem-humorado, como uma “embuggerance” – que seria algo como, er, “uma droga muito sacal”, mas ligeiramente mais vulgar (basta dizer que “bugger” é referência a sodomia que acho que dá pra pegar o espírito da coisa). Mas não temam! Como o próprio Pterry disse, ele não vai sozinho – quando morrer, levará o Alzheimer consigo!
Piadas de humor negro à parte, Terry Pratchett continua a escrever livros da série Discworld (e outros também). É uma série cômica, dramática e trágica que nunca apela para choques gratuitos como matar o protagonista ou arruinar o relacionamento amoroso favorito dos fãs, mas que ainda assim nos faz rir, chorar, sentir e pensar. Recomendo para… Bem, para todos, na verdade. Discworld deveria ser leitura obrigatória nas escolas – ajudaria os alunos a se formarem como seres humanos.
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