Ser um tradutor é algo um pouco curioso.
Simplificando enormemente nosso trabalho: por um lado, o produto final tem que fazer parecer que não existe um texto original – isto é, um livro escrito em inglês não pode parecer que foi “traduzido” para o português, mas sim que foi “escrito” em português; por outro, é preciso respeitar e preservar as características do texto original o máximo possível. Inevitavelmente, ao longo de sua carreira o tradutor se defrontará com conflitos entre esses dois objetivos e terá de decidir como resolver a situação – e muitas vezes a decisão mais correta para uma obra não será a melhor decisão para outra.
Mas não pretendo falar das dificuldades desse ofício tão pouco apreciado pelas pessoas (“Não precisa estudar para ser tradutor, basta saber uma língua estrangeira”). Quando mencionei que ser um tradutor é algo curioso, referia-me ao fato de que se ele fizer o serviço exatamente como deve ser feito, seu trabalho será invisível – como eu disse antes, o livro tem que parecer que é uma obra escrita originalmente em português, o tradutor não pode deixar sua presença transparecer (isso inclui não traduzir “rolled his eyes” por “rolou os olhos”, como aconteceu no segundo livro das Crônicas de Gelo e Fogo – se bem que um erro desses é capaz de ter sido cometido por um revisor mais afoito).
E essa introdução de três parágrafos nada mais foi que um gancho para o verdadeiro assunto deste artigo: coerência. Coerência é algo que, em certo sentido, se parece muito com a tradução: quando faz parte de um livro, filme ou episódio, nem se percebe sua presença, mas quando não faz, é muito fácil dar por sua falta.
Deixe-me dar um exemplo direto dos quadrinhos. Todos sabemos que o Super-Homem (sou da época em que as revistas nacionais ainda traduziam “Superman” por “Super-Homem”) é o modelo de um verdadeiro herói dos tempos modernos, um super-herói dedicado incansavelmente a proteger os inocentes e enfrentar os vilões… E que não mata seus inimigos. Isso é uma parte essencial de sua caracterização; todos sabemos que depois de acabar com os planos malignos do Lex Luthor, o escoteiro azulão vai levar o careca preso. É sempre assim.
Imagine agora uma história em que, de repente, o Super-Homem pega uma arma e mata o Lex Luthor. Mas hein?! Como assim?! Esse é um exemplo de falta de coerência – quando um personagem faz algo que destoa completamente de sua caracterização sem a menor explicação.
Talvez a história em si seja boa, ou talvez ela leve a novas boas histórias (talvez você queira ler histórias em que o Super-Homem deixa de ser tão escoteiro e passe a aplicar uma justiça mais severa nos super-vilões); mas incoerências deixam buracos na história, buracos que muitas vezes saltam aos olhos quando se pensa pelo menos um segundo no livro/filme/seriado/etc. e que poderiam ser evitados. No exemplo do Super-Homem, custava algo ao roteirista escrever cenas que mostravam o Lex Luthor fazendo coisas tão horríveis que o Super-Homem não vê outra alternativa que não matá-lo? Ou criar alguma outra explicação plausível que desse uma boa leitura? Não oferecer explicação alguma é, no mínimo, preguiça, possivelmente incompetência.
“Mas por que ficar pensando nessas coisas?”, talvez você pergunte. “Isso não é gastar energia com bobagens?” Bem, Você, alguns erros de coerência são tão gritantes que são perceptíveis imediatamente; outros, especialmente em filmes (que têm a magia da edição de cenas ao seu lado), realmente são tão sutis (ou bem escondidos) que parece não valer a pena pensar neles.
Um exemplo clássico. Ninguém estranhou como que no Caçadores da Arca Perdida o Indiana Jones conseguiu ficar horas, se não dias, escondido do lado de fora de um submarino sem morrer afogado, de frio ou de sede, mas todos reclamaram da cena d’O Reino da Caveira de Cristal em que uma geladeira o protegeu de uma explosão nuclear. A razão? Um simples truque de edição no primeiro filme.
Opa! Um momento, Você. É isso mesmo que está me dizendo? Que pensar não vale a pena? Vai me desculpar, mas acho que talvez você esteja fazendo uma bobagem. Sim, filmes/livros/seriados/etc. têm como objetivo principal (em sua maioria, pelo menos) nos divertir; mas daí a abdicarmos do direito de pensar sobre aquilo que lemos/assistimos/etc., bom, eu considero isso recompensar a mediocridade – é dizer ao escritor/roteirista/etc. que ele não precisa se esforçar por fazer um bom trabalho, que desde que gostemos do produto nós deixaremos ele pensar por nós.
Afinal, qual é o problema de analisarmos um pouco algo de que gostamos? Isso não diminui o prazer que sentimos com o livro/filme/etc. – pelo contrário, pode até aumentá-lo! Por exemplo, o filme O Exterminador do Futuro 2 tem um belo furo – se a ascenção de SkyNet foi realmente evitada, então a guerra entre homens e máquinas nunca aconteceu, então o John Connor do futuro nunca enviou o soldado Kyle Reese de volta ao passado, Kyle Reese e Sarah Connor nunca se apaixonaram e John Connor nunca nasceu – o que deveria gerar um enorme paradoxo temporal! Mas acham que perceber esse problema no roteiro diminuiu minha apreciação pelo filme? Nem um pouco, continua sendo um dos meus filmes favoritos!
Ou o livro O Senhor dos Anéis. A primeira vez que eu li os seis livros (sim, na primeira edição brasileira, publicada pela Artenova, eram seis livros, não três), eu estranhei algumas coisas, e uma delas foi: por que não teve um duelo épico entre o Aragorn e o Sauron? Que pena! Que desperdício! Foi só depois que cresci um pouco (eu li os livros quando criança, a primeira vez) que pensei um pouco sobre a história e fiquei satisfeito com o final; foi só aí que entendi que a história principal não era um épico de fantasia, mas sim uma moralidade, quase um conto de fadas – não é pela força das armas que se vence o Mal, mas sim pela força espiritual, pelo apoio de amigos e, às vezes, pela fé – não necessariamente em Deus, mas fé em um propósito maior para nossa vida e os eventos ao nosso redor. A trama paralela com os feitos de bravura e astúcia de Aragorn, Legolas, Gimli e Gandalf servia para realçar os temas da história principal de Frodo, Sam e Gollum, não substituí-los.
Então, caros leitores, encerro este artigo com dois pedidos: não tenham medo de pensar sobre as coisas que gostam; e não desmereçam as opiniões de quem faz isso – sim, muitos querem só encontrar algo para criticar por criticar o filme/livro/etc., mas outros apenas gostam de “exercitar suas pequeninas células cinzentas”, como diria Hercule Poirot.
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