O poder dos mitos, parte I

Sou fascinado por mitologia desde garoto (“Caramba, Hércules acabou de estrangular até a morte um leão com a pele invulnerável! Maneiro!”, “Caramba, Odin e seus irmãos construíram o mundo a partir do cadáver de um gigante! Maneiro!”… Essas coisas que toda criança gosta). Hoje em dia, além de ler essas histórias só por serem divertidas, gosto de aprender sobre seus temas, pensar no que elas significam. Afinal, para o mundo moderno, a guerra entre os deuses e os titãs é só uma lenda, mas para os gregos antigos, ela era realidade.
Um problema comum quando histórias mitológicas são reinterpretadas ou reimaginadas nos dias de hoje, especialmente pela cultura popular, é que os criadores e o público costumam se concentrar apenas na superfície delas, sem prestar atenção no que realmente significam. É parecido com o que aconteceu com as obras do Tolkien e do Robert E. Howard: cada vez que elas eram imitadas, os originais se diluíam, até que as pessoas só se lembravam de O Senhor dos Anéis e Conan como uma guerra entre o Bem e o Mal com humanos, elfos e anões e um bárbaro semi-inteligente de tanguinha de couro, respectivamente.

Por exemplo, Zeus costuma ser lembrado apenas como o cafajeste que se transformava em animais para seduzir as mulheres – isso quando ele não é um FDP completo, como no God of War 2 (o terceiro jogo ofuscou a situação quando disse que ele tinha sido infectado pelos males que saíram da Caixa de Pandora) –, mas para os gregos antigos, ele também era o deus que derrotou os titãs e trouxe a ordem ao universo. Basta ver as formas nas quais ele era adorado: deus dos juramentos, da hospitalidade, das transações comerciais… (Pois é. Os mercadores rezavam para Hermes para serem abençoados com lábia e esperteza, mas selavam os negócios em nome de Zeus para que ele atirasse um relâmpago em quem faltasse com a palavra.) Basicamente, o deus da lei e da civilização.

Em parte, isso é um resultado natural da civilização ocidental mudando com o tempo. Como eu disse antes, para nós, essas histórias são apenas entretenimento (e as mais loucas costumam ser as mais divertidas!), mas para os antigos, elas eram fatos concretos. O ateísmo já existia naquela época, mas a maioria dos gregos antigos sabia que terremotos eram causados por Poseidon, assim como a maioria dos vikings sabia que relâmpagos eram disparados por Thor.

Para sermos justos, não é como se os antigos achassem que seus deuses eram o último biscoito do pacote – não é à toa que o livro “A República”, de Platão, fala sobre como, em uma sociedade ideal, as histórias sobre os deuses teriam que ser censuradas para não darem um mau exemplo aos cidadãos. Mas eles viam nuances nessas histórias que estão perdidas para o público moderno. Por exemplo, dois conceitos importantes na cultura grega eram areté (“excelência”, em uma tradução livre) e hýbris (“orgulho excessivo”): era importante que a pessoa buscasse a excelência em tudo o que fazia e, portanto, era apropriado que ela se orgulhasse de suas habilidades e conquistas (Aristóteles fala sobre isso no Ética a Nicômaco, para quem se interessar), mas era igualmente importante a pessoa não se deixar cegar pelo orgulho. Então, quando leitores modernos aprendem sobre a lenda de Aracne e Atena (existem versões diferentes, mas na mais comum, Aracne era uma tecelã que se gabava de ser melhor tecelã que a deusa Atena e que foi transformada em uma aranha – a primeira de todas – como punição), eles veem apenas um exemplo de crueldade por parte de uma deusa mesquinha e invejosa, mas a maioria dos gregos antigos provavelmente veria uma lição de moral sobre não insultar os superseres responsáveis por manterem o mundo funcionando (afinal de contas, Aracne podia só ter se gabado de suas habilidades sem colocar a Atena no meio).

Outro exemplo, razoavelmente recente, desse tipo de coisa foi na caracterização de Aquiles no filme Troia (2004, salvo engano). Percebi muitas vezes que, quando as pessoas leem Ilíada, elas veem o Aquiles como um valentão que vai chorar na saia da mamãe para que ela sacaneie seu próprio lado; e embora o filme não o tenha mostrado especificamente como um chorão, ele mostrou um Aquiles bem arrogante e babaca (pelo menos até o momento em que ele é magicamente redimido pela chance de transar com a Briseida). Mas essas pessoas deixaram de considerar algumas coisas que, para os gregos, seriam conhecimento comum:

  1. A ideia de que “homem não chora” é mais romana (o estoicismo era uma grande virtude para os romanos) que grega. Não é como se os guerreiros gregos pudessem chorar o quanto quisessem, mas não era inapropriado que demonstrassem suas emoções, dependendo da situação. O que leva a:
  2. A honra era a maior de todas as virtudes para a nobreza guerreira e ela não era uma noção pessoal; não, ela estava intimamente ligada à opinião pública. A honra do Aquiles sofreu um golpe muito forte e muito injusto do Agamêmnon; ele foi envergonhado na frente de todos, o que diminuiu seu valor. Vale lembrar também que, embora os outros heróis presentes concordassem que o Agamêmnon estava sendo escroto, eles não defenderam o Aquiles.
  3. Apesar disso, ele foi perfeitamente cortês com os dois enviados do Agamêmnon que foram levar Briseida, como esperado de alguém de sua posição.

Portanto, ele não era um valentão, mas sim um herói verdadeiramente nobre que lutou com bravura durante toda a guerra e foi recompensado com a vergonha pública. Bem diferente do que o filme do Brad Pitt mostrou, não é? (Tendo dito isso, lembrem-se do que eu falei sobre nuances: a raiva de Aquiles sobre a maneira como foi tratado vai muito além da conta quando ele se recusa a fazer as pazes com o Agamêmnon, o que não apenas prejudica ainda mais seus conterrâneos, mas também leva diretamente à morte de seu primo, melhor amigo e possivelmente amante, Pátroclo.)

Continua…

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