Sem categoria julho 13, 2015

O poder dos mitos – parte 2

Continuando nossa passagem sobre os mitos, aproveite para ler a primeira parte de O poder dos mitos.

Resgatando nosso debate e voltando à questão das nuances: mesmo quando os mitos não são apresentados especificamente de forma negativa, geralmente são apresentados de forma bem simplificada. Por exemplo, os gênios (no original, jinn): hoje em dia, pensamos neles como espíritos presos em garrafas ou lâmpadas que concedem três desejos a quem os liberta, mas originalmente, havia relativamente poucas histórias sobre gênios aprisionados (o que faz sentido; somente feiticeiros muito poderosos, como o rei Salomão, eram capazes de tal coisa), e uma vez libertos, eles eram tão capazes de matar quem os libertou quanto de prestar-lhes um serviço em troca (e embora fossem muito poderosos, eles não eram capazes de manipular a realidade a seu bel-prazer como as versões modernas). Da mesma forma, os orixás das religiões iorubá e afro-brasileiras costumam ser descritos como se fossem deuses, mas embora muitos deles tenham “nascido” como espíritos divinos, muitos (talvez a maioria?) eram humanos que ascenderam à uma espécie de divindade; ou seja, eles são mais parecidos com divindades tribais e locais do que deuses ao estilo greco-romano (vale lembrar, também, que a religião iorubá tem uma divindade suprema, criadora e governante do Céu e da Terra, acima dos orixás).

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Outra razão para a diluição dos mitos é a demonização de religiões mais antigas pelas novas, algo comum com o cristianismo (mas não exclusivo a ele). Por exemplo, a imagem popular do Diabo – chifres, cascos, pernas peludas, todo o pacote – foi criada na Idade Média inspirada diretamente no deus Pã especificamente e nos sátiros em geral. Aconteceu a mesma coisa com Freya, deusa nórdica da fertilidade (tanto das mulheres quanto dos campos) e uma das divindades mais populares entre os vikings: histórias escritas em tempos cristãos frequentemente a mostravam de forma negativa. É só comparar, por exemplo, a versão original da lenda dos reis Hedin e Hogni (Hedin captura Hild, filha de Hogni, e os dois reis e seus guerreiros lutam até a morte, mas toda noite, Hild usa sua magia para trazê-los de volta à vida, e assim a batalha continua eternamente) com outra do séc. XIV, na qual a batalha e o encanto que faz os mortos reviverem é resultado de manipulações por parte de Freya (que não é uma deusa, mas apenas uma feiticeira poderosa), que foi forçada a fazer isso por Odin como punição por ser sexualmente promíscua.

Como dito acima, esse tipo de coisa não era feita só pelo cristianismo. Na mitologia egípcia, por exemplo, vemos que em ciclos mitológicos mais antigos o deus Set era uma divindade importante e respeitada e que Apep (ou Apófis, para os gregos) era a serpente inimiga dos deuses. A representação de Set como um vilão e covarde é, comparativamente, mais recente, e possivelmente teve causas políticas (parece que ele era um deus popular com os hicsos, povo que invadiu e conquistou o Egito por certo tempo). Hoje em dia, Set (e suas várias cópias, como os deuses-serpente tão populares na fantasia heroica) é provavelmente a 1ª escolha para “Satanás egípcio” na cultura popular, até mais que Anúbis, o “deus das múmias e chacais”. Em contraste, embora o deus Ares frequentemente fosse representado como uma divindade maldosa e destrutiva, é seu tio, Hades, quem costuma ser o “deus grego do Mal” em obras modernas, só porque ele era o governante do submundo.

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Finalmente, existe um fator adicional que não deve ser subestimado: às vezes, as fontes dos mitos das quais dispomos são imprecisas, e até descobrirmos mais, as versões antigas ficaram tão famosas que não é fácil para o público esquecê-las. Por exemplo, muitos sabem da concepção de além-vida dos vikings, certo? Aqueles que morriam em batalha iam para o Valhalla (o Paraíso), e os que morriam de doença ou velhice iam para Hel (o Inferno). Isso mostra os vikings sob certa ótica: afinal, uma cultura na qual apenas os guerreiros vão para o Céu deve ser bem belicosa, até selvagem, não é verdade? Só que a nossa principal fonte sobre os critérios para se parar em Hel, a Edda em Prosa do Snorri Sturluson, não é consistente sobre o assunto: sabemos que o deus Balder vai parar em Hel após morrer (e fontes mais antigas confirmam isso), mas ele morreu quando foi atravessado por uma flecha, não de doença ou velhice! Além disso, outras fontes mencionam outros “Paraísos” além de Valhalla: um para os que morreram afogados, um para fazendeiros… Mas caramba, as pessoas só se lembram de Valhalla! (Se bem que, para sermos justos, Valhalla é muito heavy metal.)

Algumas adaptações são compreensíveis. Quer dizer, ninguém espera que a Disney mostre um marido (Zeus) traindo a esposa (Hera) e esta tentando matar a consequência desse caso (Hércules) de todas as maneiras possíveis. Tendo dito isso, por que, então, chamar o filme de “Hércules”? Vejamos os pontos essenciais do filme: uma pessoa com superpoderes se sente deslocada no mundo por causa deles, começa a atuar como uma heroína porque acha que isso vai ajudá-la a encontrar seu lugar, e então aprende que ser uma heroína é muito mais do que achava que ia ser. Por acaso alguma coisa disso exige que essa pessoa seja Hércules, ou que a história se passe em uma Grécia mítica? Podiam muito bem ter ambientado o filme em tempos modernos e feito uma história tradicional sobre um super-herói! A única diferença é que aí não haveria o “reconhecimento de marca”, digamos, da mitologia grega, especialmente de Hércules e seus doze trabalhos. Pensando bem, eu boto a mão de alguém no fogo (não a minha, claro) de que “reconhecimento de marca” explica a maioria das decisões quanto a se adaptar ou reimaginar mitos antigos.

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É claro que não se pode esperar que o público moderno (e vamos lembrar que todo artista já fez, e ainda faz, parte do público) se identifique com todo mito sem mudar nada; a cultura ocidental mudou, afinal de contas. E é claro que algumas lendas foram adaptadas tantas vezes que qualquer artista gostaria de dar seu toque pessoal a uma nova adaptação (é só ver as lendas sobre o rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda; acho que as adaptações que se enquadrem na versão clássica do ciclo arturiano devem estar em minoria, hoje em dia). Mas estamos deixando de aproveitar tramas, personagens, temas e discussões envolventes por causa de preguiça criativa (“Esta é uma história sobre o Homem confrontando os deuses… …e vencendo? Ah, bota o Hades como o vilão e pronto”), porque não queremos pensar sobre os significados mais profundos dos mitos.

Enfim, este texto já está meio longo, então vou encerrar com apenas mais alguns pensamentos. Histórias sempre foram importantes para a humanidade; acho que nunca existiu uma cultura que não contasse histórias. Elas continuam a ser muito importantes para nós mesmo no séc. XXI, mas parece que não damos mais o devido valor a elas, que agora pensamos nelas só como entretenimento. Mas será que mesmo entretenimento deve ser apenas “só”? Será que não deveríamos nos esforçar mais em aprendermos com as histórias do nosso passado, em vez de as picotarmos todas e descartarmos tudo o que não se encaixa em nossa visão de mundo?

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