Bons antagonistas: eu os amo e os odeio, e isso me faz sofrer – Parte I

Se um homem deseja tornar-se um herói, então uma serpente deverá primeiro tornar-se um dragão; senão, lhe faltará um inimigo adequado.
– Friedrich Nietzsche

Acho que todos podem concordar que, em um jogo de RPG, o bom antagonista é aquele que é memorável, aquele do qual você ainda se lembra anos depois da campanha já ter acabado. E para se tornar memorável, o antagonista precisa de duas coisas importantíssimas: ele tem que ser um incômodo, não para os personagens – isso já faz parte do trabalho dele –, mas sim para os jogadores; e ele precisa ter uma “vida”.

O que seria de São Jorge sem o dragão, e vice-versa?
O que seria de São Jorge sem o dragão, e vice-versa? – Pintura por Gustave Doré.

Sobre a primeira característica, imaginemos, por exemplo, um jogo de super-heróis: um antagonista poderoso que simplesmente vença o herói em combate pode ser um personagem interessante e perigoso, mas não é realmente um grande incômodo – ora, se o jogo seguir a linha das histórias de antigamente, é quase uma regra que o herói deve primeiro ser derrotado pelo vilão antes de ter sua revanche! Não, um antagonista realmente incômodo seria um vilão que conhecesse a identidade secreta do herói, pusesse seus entes queridos em risco, forçasse ele a escolher entre salvar 10 inocentes ou a própria mãe, e além disso o derrotasse em combate!

É claro que a seriedade do incômodo deve depender do estilo do jogo. Por exemplo: em um jogo de super-heróis leve e divertido com momentos dramáticos ocasionais, o incômodo acima já é grave o bastante, e o herói deve ter uma chance razoável de conseguir frustrar os planos do vilão. Mas em um jogo de super-heróis mais sombrio e violento, o vilão teria a “permissão”, digamos, de ser ainda mais cruel com o herói – talvez ele incriminasse falsamente seu irmão por assassinato, revelasse sua identidade secreta à sua querida avó (provocando um ataque cardíaco na boa velhinha) e transformasse sua namorada em uma supervilã.

Tenha muito cuidado, no entanto, para não cruzar a linha entre “os jogadores odeiam o antagonista” e “os jogadores odeiam o jogo”. Sofrer nas mãos de um antagonista vez ou outra é bom, isso apimenta o jogo e enche o jogador de vontade de derrotar seu inimigo; sofrer constantemente nas mãos de um antagonista que aparentemente é onipotente, onisciente e onipresente tira toda a graça do jogo e faz com que o jogador perca o ânimo. Como em quase tudo na vida, penso que o importante aqui é ter moderação.

Tangente: misericórdia

Na minha experiência, tanto como Mestre de Jogo quanto como jogador, os jogadores não têm o hábito de poupar a vida de seus antagonistas, exceto em jogos que tenham uma regra para penalizar esse tipo de atitude, como o 7th Sea, o DC Heroes/Blood of Heroes, ou o Star Wars: The Roleplaying Game.

Penso que existem duas razões principais para isso: a primeira é que o gênero de RPG mais popular, a fantasia medieval, encoraja tanto o Mestre a usar “hordas do mal” que os jogadores deixam de enxergar os inimigos como se estes fossem indivíduos, pessoas que talvez mereçam uma chance de se redimir; e a segunda é que muitos dos inimigos usados por Mestres de Jogos realmente não merecem o perdão – pensem bem, será que podemos aplicar conceitos como Ética ou Moral a um demônio (por exemplo), um ser literalmente incapaz de ser qualquer coisa que não maligno?

Um dos principais autores de fantasia medieval, J. R. R. Tolkien, não chegou a se decidir sobre a verdadeira origem dos orcs justamente porque ele repudiava a idéia de que qualquer ser vivo pudesse ser maligno de nascença, ou incapaz de se redimir. Mas o conde Drácula no romance homônimo de Bram Stoker era literalmente um demônio que possuía o cadáver de Vlad Dracul e mantinha a alma deste presa e em sofrimento. Como redimir um ser desses?

Bela Lugosi interpretando Drácula no filme homônio de 1931.
Bela Lugosi interpretando Drácula no filme homônio de 1931.

Vou me corrigir: apesar de ter dito “duas” razões no parágrafo anterior, penso que existe mais uma ainda. É bem verdade que na vida real a maioria das pessoas só mataria outra em casos muito extremos, mas no contexto cultural tradicionalmente associado à fantasia medieval (olha ela aí de novo!), conceitos como “direitos humanos” (ou élficos, anões, etc.) não existem e a vida em geral não tem muito valor – especialmente de seres monstruosos como orcs e goblins! –, apesar dos cenários de fantasia medieval normalmente serem mais limpos (em todos os sentidos) que a Idade Média real.

Vou dar um exemplo desse tipo de dilema, tirado de uma campanha na qual joguei.

Estávamos jogando um jogo de Dungeons & Dragons. Meu personagem, um bardo guerreiro, era o líder do grupo. O grupo atravessava uma região pantanosa esparsamente povoada em busca de uma criança élfica, o filho de um importante diplomata, que fora sequestrada. Foi então que chegamos a uma vila que era obrigada a servir a um jovem dragão negro.

Resumindo a história: descobrimos que a criança élfica havia sido entregue por seus captores ao dragão como tributo para sua passagem, mas os habitantes da vila estavam tão aterrorizados e oprimidos pelo dragão que, a mando de sua líder e sacerdotisa, nos aprisionaram e nos obrigaram a passar por um julgamento por combate para podermos ir embora (mas não ir atrás do dragão, que fique bem claro). Detalhe: nossos oponentes no julgamento eram crocodilos famintos e fomos obrigados a lutar desarmados.

Na noite anterior ao combate, quando estávamos aprisionados, consegui convencer um dos habitantes da vila que era de seu interesse nos ajudar – afinal, se os elfos descobrissem que eles haviam ajudado a manter o filho do diplomata nas garras do dragão, eles iam sofrer! Então, assim que fomos jogados em um poço largo e comprido para enfrentarmos os crocodilos, ele nos jogou algumas armas.

E foi aí que o principal guerreiro da vila, um meio-orc que era o filho adotivo da sacerdotisa, matou esse homem que nos ajudou. E matou com gosto – o Mestre fez questão de descrever a gargalhada que o meio-orc soltou ao atirar a flecha que matou o NPC! E tanto os jogadores quanto os personagens sentiram uma raiva tremenda dessa crueldade gratuita.

SpikedChainOrc

O que mais se poderia esperar de uma raça que já começa com redutores em Inteligência e Carisma?
(Desenho feito por Xeraph, membro dos fóruns de Dungeons & Dragons da Wizards of the Coast.)

Resumindo ainda mais a história: vencemos o combate, recuperamos nossas coisas, fomos embora mas voltamos sorrateiramente, enfrentamos e derrotamos os guerreiros da vila, depois atraímos o dragão e o matamos. Durante o combate com os guerreiros, eu pedi aos outros PCs – e todos concordaram – que deveríamos segurar os golpes para não matarmos ninguém; afinal de contas, também estávamos lutando para salvá-los do dragão, não fazia sentido matá-los! Mas o meio-orc nós não poupamos, e isso foi uma decisão deliberada; jogadores e personagens sentiram que se um ser desprezível daqueles, capaz de sentir prazer com o sofrimento alheio, morresse, aquele mundo fictício seria um lugar melhor.

Por outro lado, muitas vezes é possível – e até proveitoso – ser misericordioso, sim. Em um jogo de Dungeons & Dragons 3.5 que narrei, um dos jogadores fez um Monge pacifista e candidato à santidade, usando os Sacred Feats do Book of Exalted Deeds. No final do jogo, quando os PCs estavam em níveis 19 ou 20, ele tinha um bônus de Diplomacia de… +43? Acho que era algo assim. Não era o temido (e absurdo) “Diplomante” dos fóruns da Wizards, mas era o maior diplomata do mundo no meu jogo.

Sempre que o grupo encontrava antagonistas inteligentes, mesmo que fossem monstros, esse monge (cujo nome, apropriadamente, era Pax) tentava primeiro dialogar com eles. E o melhor é que muitas vezes ele conseguia – não apenas por causa de seu bônus absurdo de Diplomacia, mas também porque o jogador sabia construir argumentos racionais que apelavam à decência mais básica dos seres com quem conversava. Quando ele não tinha sucesso, é porque o ser com quem ele dialogava era literalmente incapaz de sentir coisas como compaixão ou misericórdia, ou então estava tão filosoficamente oposto a ele que não havia como os dois encontrarem um meio-termo.

(Percebam que, pelas regras oficiais do sistema, nada disso importaria – se o jogador rolasse bem o bastante, até mesmo um demônio viraria um anjo. Mas conversei com o jogador antes do jogo, e ambos concordamos que o bom-senso deveria prevalecer sobre as regras quando necessário.)

kenshin, Samurai X - Ilustração por Nobuhiro Watsuki, autor do mangá
kenshin, Samurai X – Ilustração por Nobuhiro Watsuki, autor do mangá

Como exemplos de antagonistas que Pax conseguiu trazer de algum modo para o seu lado, temos um monge rival, treinado pelo mesmo mestre de Pax, que só respeitava a força – Pax conseguiu convencê-lo a buscar a harmonia através de métodos pacíficos e até a se tornar um instrutor no monastério onde foram treinados; um mercenário drow que tinha sido contratado pelos vilões principais da campanha – ele não chegou a se tornar um aliado do grupo, mas não usava todos os recursos de que dispunha para atrapalhá-los e às vezes até os ajudava indiretamente; e um samurai possuído por uma espada amaldiçoada sedenta de sangue – após destruir a arma, Pax convenceu o samurai a não se matar e a tentar se redimir de algum jeito pelas mortes que causara.

Kenshin Himura, protagonista do mangá Rurouni Kenshin (Samurai X aqui no Brasil). Quase sempre ele consegue fazer com que seus oponentes reavaliem a si próprios e mudem de vida; e mesmo quando não consegue, ele os detém sem matá-los.

Então, o que quero dizer é – jogadores, dependendo do gênero do jogo, não tenham medo de tentar dialogar com os inimigos; e Mestres, deem aos jogadores a oportunidade de dialogar com os inimigos! A interpretação será divertida, e isso talvez abra novas possibilidades para a história que vocês não tinham imaginado ainda!

Bom, falei, falei, e acabou que a “tangente” ocupou mais espaço que o artigo em si. Vou ter que terminar a falar sobre os bons antagonistas na próxima parte!

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