Obra épica? Repensando O Senhor dos Anéis

Olá novamente, caros leitores! Lamento pela demora em enviar-lhes um novo texto, mas a vida de um bardo viking é muito atribulada. Agora, sem mais delongas, vamos ao que interessa.

Coincidentemente, há algum tempo (antes mesmo da estreia do filme d’O Hobbit – que ainda não vi, mas pretendo ver) que venho pensando na maneira como O Senhor dos Anéis costuma ser interpretado, tanto por aqueles que só viram os filmes quanto por aqueles que realmente leram os livros. E cheguei a uma conclusão: acho que a maioria das pessoas interpreta mal a obra. Sim, mal! O Senhor dos Anéis é talvez a obra de fantasia que conheço que mais é interpetada erroneamente! Parece arrogância minha dizer isso, mas calma, deixem eu me explicar, por favor.

C. S. Lewis também era extremamente britânico. Sabem como sei disso? Ele bebia chá.
C. S. Lewis também era extremamente britânico. Sabem como sei disso? Ele bebia chá.

Antes de mais nada, quero deixar bem claro que isso não é uma questão de gosto. Se você não gosta de Tolkien por uma razão ou outra, isso é seu direito e é algo completamente normal; não tem nada a ver com o fato de eu dizer que as pessoas costumam interpretar mal a trilogia (ou hexalogia, em edições mais antigas). Cá entre nós, eu mesmo acho que há muitos trechos que são mesmo bem chatos, embora goste muito de outros que não costumam ser bem apreciados, especialmente as cenas iniciais no Condado – muitos dos personagens (como o Gandalf, por exemplo) demonstram um senso de humor sutil, seco e extremamente cortante (bem britânico, na verdade).

Não, a questão é outra: O Senhor dos Anéis costuma ser interpretado como um épico.

Bom, sejamos justos, é uma interpretação que, por um lado, faz sentido: Gimli e Legolas disputam para ver quem mata mais orcs no Abismo de Helm (e, se bem me lembro, na Batalha dos Campos de Pelennor também); Boromir, antes de finalmente morrer, mata quase duas dezenas de orcs, sozinho; Aragorn lidera um exército de fantasmas contra os navios negros; Éowyn e Merry, juntos, conseguem destruir um feiticeiro morto-vivo que já “vivia” há séculos. Há muitos feitos heroicos nos livros, e eles são tratados com toda a atenção que merecem. Na verdade, é até possível vermos Aragorn, Legolas e Gimli como uma “versão tolkieniana” do rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda.
Os filmes, claro, só exageraram a situação, especialmente com Legolas “Metralhadora de Flechas” derrubando dois olifantes com uma única flecha, surfando em um escudo e realizando feitos acrobáticos impossíveis para meros mortais (como, por exemplo, montar em um cavalo em pleno galope usando apenas uma mão e girando sobre si próprio).

Aposto que o jogador do Legolas conseguiu convencer o Mestre a deixá-lo usar uma classe diferente dos outros - provavelmente, Cavaleiro Jedi
Aposto que o jogador do Legolas conseguiu convencer o Mestre a deixá-lo usar uma classe diferente dos outros – provavelmente, Cavaleiro Jedi

Mas a verdade é que os livros não são um épico e nunca foram. Apesar de dar nome ao terceiro livro, o retorno do rei a Gondor não é a trama principal. Não, ela serve, na verdade, ao mesmo tempo como contraponto e pano de fundo para a história dos verdadeiros protagonistas: Frodo Bolseiro e Samwise Gamgi.

No fundo, O Senhor dos Anéis é um conto de fadas: pessoas consideradas pequenas, fracas e medíocres (os hobbits) demonstram possuir virtudes até então desconhecidas (coragem, sabedoria, força de vontade e abnegação), virtudes que na verdade as colocam acima dos que as julgavam (Gandalf, Galadriel, todos recusam carregar o Um Anel por medo de não resistirem à tentação), e conseguem realizar feitos extraordinários (destruir o Um Anel).

Mas não é um conto de fadas comum: é um conto de fadas marcado pela perda e pelo sofrimento causado pela guerra. Sim, a maioria dos personagens são guerreiros, mas a guerra não é glorificada, ela é tratada como algo terrível mas às vezes necessário para que pessoas de bem se defendam: “- A guerra deve acontecer, enquanto estivermos defendendo nossas vidas contra um destruidor que poderia devorar tudo; mas não amo a espada brilhante por sua agudeza, nem a flecha por sua rapidez, nem o guerreiro por sua glória.” (As Duas Torres. São Paulo: Martins Fontes, 286.)

A morte não é (como em tantas outras obras ditas “mais maduras”) trivializada: “Era a primeira vez que Sam via uma batalha de homens contra homens, e não estava gostando muito do espetáculo. Ficou feliz por não conseguir ver o rosto morto. Perguntava-se qual seria o nome do homem e de onde teria vindo, e se realmente tinha o coração mau, ou que mentiras ou ameaças o teriam conduzido na longa marcha desde seu lar, e se realmente não teria preferido ficar lá em paz(…)” (As Duas Torres. São Paulo: Martins Fontes, 274-275.)

Está vendo esse gentil senhor? Ele lutou na Batalha de Somme, uma das batalhas mais sangrentas da 1ª Guerra Mundial, e voltou vivo. É isso mesmo: Tolkien provavelmente poderia quebrar qualquer um de seus fãs na porrada.
Está vendo esse gentil senhor? Ele lutou na Batalha de Somme, uma das batalhas mais sangrentas da 1ª Guerra Mundial, e voltou vivo. É isso mesmo: Tolkien provavelmente poderia quebrar qualquer um de seus fãs na porrada.

E mesmo a vitória contra Sauron tem seu preço: Frodo carrega consigo feridas que nunca saram de verdade, e por fim tanto ele quanto Gandalf, Elrond e os elfos em geral precisam abandonar a Terra-Média. A implicação é óbvia: o Bem venceu, mas mesmo assim a magia e o encanto se vão do mundo, que agora é menor e mais mundano. E apesar de Sauron perder sua forma e poderes por muito tempo, talvez mesmo para sempre, ainda assim sua sombra perdurará nesse novo mundo – o Mal nunca será vencido para sempre, ele sempre continuará a existir de algum modo.

Então, é por causa disso tudo que penso que O Senhor dos Anéis costuma ser mal interpretado, e que os filmes, especialmente, apresentaram uma visão errada da obra. E vocês, caros leitores, o que acham?

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