Bons antagonistas: eu os amo e os odeio, e isso me faz sofrer – Parte II

Em um mundo porco onde não se tinha a certeza de se ter verdadeiros amigos, não deixava de ser um consolo se ter um verdadeiro inimigo.
– Giovanni Guareschi, Dom Camilo e os cabeludos

Bem-vindo de volta, caro leitor! Continuemos a falar de bons antagonistas, então.

Lá no começo da Parte I, mencionei que um bom antagonista precisa de duas coisas: ser um incômodo para os jogadores, e vida. Já falei sobre a primeira na Parte I, então falarei agora sobre o que seria essa “vida” da qual o antagonista precisa (fale a verdade, você pensou que eu tinha me esquecido disso, não é?).

Bom, por “vida”, quero dizer que acho muito importante que o antagonista seja construído exatamente como se fosse um personagem de um jogador: ele tem que ter um histórico, personalidade, motivações, objetivos… Uma razão para existir na trama e no cenário que não seja apenas “servir como um obstáculo para os protagonistas”. Um antagonista desses não só será bem mais interessante, tanto para os jogadores quanto para o Mestre (afinal, nesse exercício criativo de se construir o antagonista, é bem capaz que você tenha ideias melhores para o para o personagem e para a campanha), como será muito mais fácil de usar – quando (não “se”, mas “quando”) os jogadores fizerem algo inesperado, será mais fácil improvisar as ações e reações do antagonista se você já o tiver bem construído em sua cabeça.

DC_Villains

Vou dar alguns exemplos, tirados de meus próprios jogos, de antagonistas dos quais me orgulho porque foram bem construídos e, principalmente, funcionaram muito bem em jogo. Também darei um exemplo de um antagonista que acabou me decepcionando.

1° exemplo: Sven Martelo da Wyrm (Lobisomem: Idade das Trevas)

Antes de mais nada: “Martelo da Wyrm” porque ele era o martelo que esmagava a Wyrm, não porque ele era o martelo empunhado pela Wyrm. Algumas pessoas estranharam a alcunha dele, mas segui o mesmo modelo que o Tolkien adotou para a espada encantada do Gandalf, a Glamdring, ou Martelo dos Inimigos (“Foehammer”, no original).

Esse jogo de Lobisomem: Idade das Trevas se passava na Inglaterra no século V, pouco mais de dez anos depois dos romanos terem abandonado a Bretanha. A situação política estava um caos, pois o rei Uther Pendragon havia acabado de morrer (sim, eu estava usando os eventos das lendas arturianas como pano de fundo para a história), e os anglos, jutos e saxões invadiam a Bretanha. Aproveitando-se do caos, os Fenrir seguiram seus Parentes germânicos nas invasões e começaram a tomar os caerns dos Fianna (que viviam entre os bretões que ainda preservavam sua cultura celta) e dos Presas de Prata, Senhores da Sombra e Sentinelas da Humanidade (que viviam entre os romanos assentados e os bretões romanizados), enquanto os Filhos de Gaia (que chegaram na ilha junto com os monges e missionários cristãos) tentavam trazer um pouco de paz e ordem mas na maior parte das vezes ficavam presos no fogo cruzado entre as tribos em guerra.

Bem, o Sven era o líder dos invasores Fenrir e foi o grande antagonista da primeira parte da história. Pensem em um viking misturado com um proto-nazista pseudo-darwinista e saberão como ele era: um homem extremamente arrogante, convicto da superioridade física e moral de sua tribo – e particularmente dele próprio – sobre seus oponentes, disposto a matar ou escravizar os outros lobisomens para tomar as terras e os caerns que julgava serem posse de direito dos Fenrir, alguém para quem a maior parte dos humanos não passava de gado ou peças de xadrez. Era um homem que matava, pilhava, destruía e violentava, tudo em nome de sua visão de uma Bretanha purificada e forte – liderada por ele, claro. Um verdadeiro bárbaro, mas que também era um grande guerreiro, um grande estrategista e até mesmo um líder inspirador, para quem seguisse sua filosofia.

Esse filme não tinha saído ainda na época, mas eis aí um bom exemplo do tipo de pessoa que o Sven era. “Finalmente, um homem digno de se matar!”

Cerdic, o rei saxão
Cerdic, o rei saxão do filme Rei Arthur, de 2004, interpretado pelo ator Stellan Skarsgard

Ah, e ele também era o pai de metade do grupo: dois PCs eram seus filhos assumidos (sendo que um deles odiava o pai); e outro PC era o filho de uma lobisomem da tribo dos Filhos de Gaia que foi violentada pelo Sven só para humilhar um lobisomem que odiava, Menelau, um Filho de Gaia romano que era o pai adotivo desse PC.

O Sven era um personagem completamente odioso, e eu fiz ele justamente para ser assim. Tanto os PCs quanto os jogadores odiavam ele, e passaram a odiar mais ainda quando finalmente conseguiram firmar uma trégua entre os lobisomens da Bretanha e foram obrigados a lutar ao lado do Sven contra o grande vilão da história, o Deysered. Foi um antagonista marcante que rendeu ótimas histórias e atuações na mesa.

2° exemplo: Deysered (Lobisomem: Idade das Trevas)

Deysered, o grande vilão do jogo de Lobisomem: Idade das Trevas, era um sacerdote egípcio da época de Cleópatra que tentou resistir à dominação do Egito pelos romanos (não por nacionalismo ou qualquer coisa do gênero, mas para preservar seu poder), foi preso e torturado, conseguiu escapar, e buscou na feitiçaria um jeito de se vingar. Acabou entrando em contato com um Totem Maldito, Anklahotep, que sentiu nele um grande potencial e o ensinou um ritual que o transformaria em uma múmia (ver Mummy, 2nd Edition, ou então Mummy: The Resurrection). Mas o Anklahotep não era um mentor confiável: não só ele ensinou uma versão corrompida do ritual, mas ainda deixou um rastro para que uma matilha de Peregrinos Silenciosos atacasse o Deysered durante o ritual. O feiticeiro conseguiu se defender, e com a ajuda do Anklahotep conseguiu até repelir os lobisomens, mas em vez de se tornar um feiticeiro imortal como esperava, ele foi transformado em um morto-vivo putrefato. Incapaz de lidar com o horror em que havia se transformado, ele culpou os lobisomens por terem atrapalhado o ritual e desde então desenvolveu um ódio patológico pelos Garou.

Lon Chaney Jr. como a múmia
Como eu disse, morto-vivo putrefato.
(Foto de Imhotep, vilão do filme A Múmia, de 1999.)

O Deysered foi um vilão de quem eu gostava, mas que, infelizmente, foi decepcionante – ainda mais quando comparado ao Sven. Consegui fazer com que os jogadores o odiassem também, mas não pelas razões que eu queria: eles não o odiavam ou desprezavam por ele ser um homem que deliberadamente se transformou em uma abominação em nome de um ideal distorcido, ou por ele perverter a magia natural da Bretanha para seus próprios fins dementes, ou ainda por todo o mal que ele causou a inúmeras pessoas ao longo de séculos de uma existência desperdiçada em um ódio insano; eles o odiavam simplesmente porque ele era um vilão muito poderoso que os derrotou muito facilmente da primeira vez em que se enfrentaram.

Acho que foi a primeira vez que eu vi na prática como o equilíbrio era importante para o jogo: o que eu queria era deixar os jogadores e os PCs assustados com um inimigo perigoso que usava poderes que eles nunca tinham visto antes, mas também irritados com o que ele era (vide acima) e ansiosos por derrotá-lo; mas apliquei pressão demais sobre eles, e acabou que em vez de ser um antagonista odiado, o Deysered passou a ser o astro de piadas como “Deysered Massacra a Marvel” e afins.

3° exemplo: Os Senhores da Terra (Dungeons & Dragons)

Os Senhores da Terra foram os verdadeiros vilões principais de uma campanha de D&D em Forgotten Realms que narrei, mais do que o demônio Archimonde (copiei o nome na cara de pau do Warcraft 3; mas só o nome), que pareceu ser o grande antagonista a princípio.

Nessa campanha, eu quis tratar dos seguintes temas: até que ponto as pessoas estão presas ao Destino? O que faz um herói ser um herói? O que é mais importante, a força ou a virtude? De que adianta virtude sem força, e de que adianta força sem virtude? É possível definir a virtude de acordo com apenas um ponto de vista, ou existem várias “virtudes”?

Os Senhores da Terra foram grandes heróis (e tiranos) que haviam derrotado os planos de resurreição de Archimonde séculos antes da época em que o jogo se passava, auxiliados (e manipulados) secretamente por um arcanjo obcecado em criar heróis para a futura batalha final entre os Céus e os Infernos; mas quando descobriram o anjo e se libertaram de suas manipulações, este ajudou os pais de um dos PCs (uma drow) a aprisionarem-nos em uma prisão mística. Mas um deles, um feiticeiro poderoso, conseguiu libertar seu espírito dessa prisão depois de séculos de esforço e manipulou os PCs para libertá-los.

Eles eram:

– Aengus Ahearn, um grande guerreiro e general, devoto do deus da guerra, do medo e da tirania (Bane, para os conhecedores; o jogo se passava antes do Time of Troubles, então Bane, Bhaal e Myrkul ainda existiam). Ele acreditava que o estado natural dos seres inteligentes era a desordem e a cobiça desenfreada e que as pessoas comuns eram fracas de corpo e espírito, por isso a ordem e a justiça deveriam ser impostas com mão de ferro por aqueles que fossem verdadeiramente fortes, tanto de corpo quanto de espírito. Um ditador, mas um ditador “iluminado” à maneira de Filipe, o Belo e Frederico Barba Ruiva, não um Stalin ou um Pol Pot.

– Valerik Rendall, cavaleiro e ex-integrante de uma ordem de guerreiros jurados ao serviço do deus da justiça (Tyr), à semelhança dos Templários e Hospitalários. Ele perdeu a fé em sua ordem e em seu deus quando as intrigas internas da ordem causaram indiretamente a morte de vários inocentes. Influenciado por seu melhor amigo, Aengus Ahearn, ele se converteu à religião de Bane e passou a seguir uma definição inflexível de justiça, acreditando que apenas assim ela poderia se manter livre de influências corruptoras. O tipo de pessoa que jamais mataria um inocente, mas seria o primeiro a estripar um servo do Mal – mas ELE definia quem era inocente e quem servia ao Mal.

– Ulric Wolfgang, um bárbaro das terras do norte (Uthgardt), um dos poucos sobreviventes de uma tribo que era temida e odiada pelas outras por que seus líderes eram lobisomens devotos de Malar (um deus maligno servido por licantropos devoradores de gente). Ele cresceu acreditando firmemente que a vida é um conflito eterno no qual apenas os fortes sobreviviam, e que nada serviria de barreira quando o objetivo era a sobrevivência. Além disso, ele basicamente desprezava todos os seres “civilizados”, considerando-os fracos e hipócritas – exceto seus amigos, os outros Senhores da Terra, que haviam provado a ele serem dignos de sua lealdade (e até mesmo admiração).

– Ahura Yazda, o sacerdote de um deus vivo que reinava como governante absoluto em um reino baseado na antiga Suméria (Gilgeam; o reino era Unther), foi preso e torturado por causa das manipulações de rivais políticos; mas ele era descendente de um poderoso dragão azul, e quando estava prestes a ser executado, foi salvo pelo culto da deusa dos dragões malignos, inimiga do deus vivo (Tiamat), e tornou-se sacerdote da deusa. Sua visão de mundo girava em torno de poder – não poder político, mas poder real, isto é, magia – e ele estudava magia obsessivamente, combinando magia arcana e divina em sua busca por um estado superior de existência, uma espécie de apoteose. Amava os outros Senhores da Terra como se fossem seus irmãos, mas via todos os outros seres vivos apenas como peões ou cobaias.

dragonlance
Da esquerda para a direita: Aengus Ahearn, Valerik Rendall, Ulric Wolfgang e Ahura Yazda. Sim, são todas ilustrações oficiais de personagens dos livros de Dragonlance; respectivamente, Ariakan, Steel Brightblade, Verminaard e o rei-sacerdote de Istar.

Por que os jogadores os odiavam? Em primeiro lugar, porque, como eu disse, os PCs foram manipulados para libertar os Senhores da Terra de sua prisão – e sem que eles precisassem mentir uma única vez, apenas omitiram informações. Na minha experiência, se tem uma coisa que jogadores costumam detestar (de um jeito bom) é sentirem que caíram na trama do Mestre.

Em segundo lugar, porque eles transformaram o lar adotivo dos PCs – a cidade que serviu de cenário de campanha para eles por dez níveis, cheia de NPCs dos quais gostavam bastante – em uma cidade-estado imperialista, militarista e fascista, e ainda assim eram amados pelo povo por trazerem ordem a uma situação de caos. Isso incomodou os jogadores porque, como eu disse, a cidade foi o cenário de campanha deles por dez níveis, eles se afeiçoaram ao lugar e aos NPCs, e eis que vem os vilões e mudam tudo para o pior!

E em terceiro lugar, porque eles realmente foram necessários. Naquele momento da campanha, os Senhores da Terra eram realmente os únicos personagens que tinham o poder, o conhecimento e a experiência necessários para combater o culto a Archimonde e impedir a resurreição do demônio. Os jogadores acabaram se sentindo culpados porque foram levados a libertar um grande mal – os Senhores da Terra – para combater outro mal que eles mesmos não conseguiram enfrentar.

Quanto a mim, gostei bastante deles por mais outra razão além dessas: eles foram vilões memoráveis porque durante toda a sua participação na história, eles tiveram um confronto verdadeiramente filosófico além de físico com os PCs – e seus argumentos e pensamentos soaram críveis e racionais a ponto de confundir (ainda que apenas temporariamente) a ética de alguns dos jogadores!

Como consegui isso? Porque eles quatro eram basicamente o que os PCs poderiam ter se transformado em suas carreiras de aventureiros. Construí os quatro de forma que fossem basicamente um grupo de PCs que avançou normalmente do 1º nível ao 20º, exceto que eram todos de tendência Maligna (o Aengus e o Valerik eram Ordeiros e Malignos, o Ulric e o Ahura eram Neutros e Malignos). Criei seus históricos e personalidades, imaginei as aventuras que tiveram, como essas aventuras teriam influenciado seu desenvolvimento, que motivações eles tinham originalmente e ainda poderiam ter… Em resumo, eles eram PCs como outros qualquer, só que controlados pelo Mestre e antagônicos aos personagens dos jogadores.

Bem, encerro este longo artigo por aqui. Espero logo ter mais coisas para dividir com você, caro leitor. Até a próxima!

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